vamos ver os carros a passar?
Digam de vossa justiça, todos vocês eram (e como dizia a minha avó) “boa boca” em pequenos?
Na minha família creio que temos um caso crónico de “esquisitice”.
O meu pai por exemplo, um senhor alto e muito bem-apessoado, come de tudo e é o Masterchef lá de casa, improvisa e cozinha maravilhosamente bem (tivesse ele mais tempo … ai ai, delicia) ninguém diria que era um autêntico ‘finguelinhas’ em criança. (para sinónimos, consultar o dicionário do Norte)
Reza a lenda, que a minha avó lhe preparava os lanches para levar para a escola e ele, como não queria comer, chegava ao fundo das escadas e colocava o pão com manteiga direto da caixa do correio. A minha avó dava por ela ao final do dia ou, por vezes, só no dia seguinte. Claro que ‘havia molho’ de seguida, até porque não havia fartura pelo que desperdiçar o que quer que fosse era, para a minha avó, um flagelo.
Já eu era esquisita e continuo a sê-lo. De tal forma, que a minha avó tinha que me distrair para me conseguir pôr alguma coisa à boca, por isso íamos para a janela ver os carros a passar, escolhíamos uma cor e sempre que algum carro dessa cor passasse ela dava-me uma colher de comida. Escusado será dizer que passávamos horas na janela. E íamos mudando de cor para o jogo render. E quando comecei a conhecer letras, fizemos um upgrade ao jogo para identificar determinada letra nas matrículas que passavam. (facilitava a sua tarefa o facto de morar perto da estação de comboios de Coimbra e haver algum movimento naquela zona)
Não tenho muitas memórias de infância da minha avó, mas tenho essa imagem muito gravada em mim, lembro-me perfeitamente de estar no banquinho de madeira, que ela tinha sempre ao lado da janela, a ver os carros a passar e a ‘tentar’ ingerir comida.
E mais tarde, quando entrei na primária, e como já sabia o abecedário e algumas palavras, ela deixava-me ajudá-la a fazer as sopas de letras. Ai, o que eu adorava as sopas de letras!
Via a palavra, mesmo sem saber o que significava, e procurava igual naquele emaranhado de letras. Tornei-me muito rápida, ao longo dos anos, uma “profissional da sopa” como dizia a minha avó a rir.
Na sua simplicidade, e paciência mais ou menos controlada, ela cuidava de mim e ia estimulando os meus conhecimentos. Hoje andei de metro, já não o fazia há anos, e dei por mim a contar os carros vermelhos que passavam … memórias…não somos todos nós feitos delas?