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pedir ajuda: vergonha ou coragem?

Tri, 05.03.21

Nas arrumações do último fim-de-semana, em casa dos meus pais, encontrei por lá uns livros de António Aleixo que conheço desde sempre, e há poemas seus que são míticos, mas de facto não conheço bem a sua obra.

Dediquei-me assim à leitura da sua obra que prima pela ironia e crítica social. Mesmo quem não conheça o homem por detrás da escrita, percebe que é alguém muito simples e humildade, sem estudos até, mas do alto da sua simplicidade consegue colocar em palavras questões, temas e situações muito concretas.  

Encontrei por lá um poema que me despertou a atenção, pelo seu conteúdo e por tantos anos depois eu o achar tão atual…e por infelizmente conhecer algumas pessoas que se relacionam perfeitamente com as suas palavras.

Partilho convosco para que de alguma forma possa servir de alerta para alguém…quando precisamos de ajuda não é vergonha pedir, seja que tipo de ajuda for. Não pode ser vergonha.

Não precisamos fazer publicidade disso, apenas ir aos sítios certos, às associações certas, se for o caso, e explanar a situação para melhorar a nossa vida. As nossas ajudas são temporárias, não resolvem os problemas mas permitem aliviar momentaneamente. E há sempre uma forte rede de contactos por trás que acaba por auxiliar efetivamente na resolução de dado problema, seja o não estar a conseguir ter acesso ao algum apoio, seja o não conseguir ter um infantário para o miúdo, seja precisar de trabalho.

Tentar não custa e é sempre preferível do que o sofrimento que fica entre quatro paredes.

Repito, não é preciso fazermos publicidade das situações, as pessoas não têm todas que saber, se não estamos confortáveis com isso, mas temos que pedir ajuda às pessoas certas que irão ajudar enquanto for possível. Ou estarmos atentos aos nossos vizinhos, à Dª Maria da mercearia, que agora nem vemos tanto, e intercedermos por eles. Pela sua vergonha e orgulho que por vezes os impede de pedir ajuda.

Percebo o desespero, a sensação de impotência, de dependência … em contrapartida tantos outros fazem disso um modo de vida, limitando quem realmente necessita.

Deixo aqui o desabafo nas palavras de António Aleixo e que sirva apenas como chamada de atenção.

 

 

<<É a carta que ides ler

Uma simples despedida;

P’ra não partir sem dizer

Um adeus a esta vida.

 

Não me julguem um covarde

Por não q’rer continuar,

Desisto por ver que é tarde

Para me reabilitar.

 

Mais de dois anos sofri em segredo

Esta tortura que aos pobres consome,

Só por ter vergonha, que era quase medo,

Que alguém soubesse que passava fome.

 

Estendi um dia a mão à caridade,

Tapando a cara com a outra mão;

Senti tremer a minha dignidade

Que se curvava ao peso de um tostão.

 

Olhei p’ra mim quase desfalecido,

Sem compreender porque acabava assim;

Desfeito então num pranto mal contido,

Dei por mim mesmo chorando por mim.

 

Depois, deitando o coração ao largo,

De mim p’ra mim disse, raciocinando:

‘O pão da esmola é muito mais amargo

Que o pior pão que ganhei trabalhando.’

 

Só de noite é que eu saía

P’ra ir pedir na cidade.

E então cá ninguém sabia

Da minha lenta agonia,

Da minha fatalidade…

 

Quis antes um palheiro por guarida

Que entrar como ladrão numa aldeia;

Preferi ser mendigo e suicida

A ser grande e feliz à custa alheia.

 

Como a querer resignar-me, vi em mim

O novo personagem que era agora;

Quem chorava era o outro ti Jaquim,

Que orgulhoso de si viveu outrora.

 

O prumo, o esquadro, a colher, o martelo,

Que pouco valem à primeira vista,

São as imagens desse sonho belo

Que era p’ra mim o orgulho do artista.

 

Se já não sou operário amigo,

Útil e novo, respeitável e forte…

Quem morre agora é um simples mendigo

P’ra o qual a vida era pior que a morte.

 

Se consciente resolvi morrer

Foi por saber, e ser também consciente,

Que morrer custa menos que viver,

Morrendo aos poucos num mundo diferente.>>

António Aleixo

In “este livro que vos deixo …”

 

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