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ainda bem que a minha mãe morreu

Tri, 15.01.24

Há pouco tempo, em conversa com um colega de trabalho, cuja história de vida daria para um enredo de uma novela, constatei o quanto os nossos traumas de infância, as contingências, o ambiente em que crescemos e nos desenvolvemos impactam totalmente o adulto que somos. (não que não soubesse, mas ver casos reais, mexe connosco…)

Fez-me lembrar de um livro que li o ano passado, “Ainda bem que a minha mãe morreu”, cujo título me afetou (cumprindo o objetivo de marketing) mas que, mais tarde, percebi que era assim mesmo apenas para causar polémica.

JennetteMcCurdy.png

Demorei algum tempo a pegar neste livro porque nunca gostei muito de aderir aos top’s de vendas, à literatura mais comercial e de quem todos falam. Não que não sejam livros merecedores, eventualmente, e que não tenham todo o mérito em serem extremamente falados, eu é que nunca fui de modas (nem na roupa) e sempre que muito se fala a expectativa também sobe em demasia e quando pegamos no livro, a desilusão pode ser excessiva simplesmente devido à expectativa.

Portanto, gosto de ler algumas obras, quando já ninguém se lembra delas. Não foi aqui o caso, este título inquietou-me e tive que lhe pegar.

Um testemunho real relatado pela própria Jennette McCurdy, atriz infantil de uma daquelas séries longas de Nickelodean, que têm sempre muito fama.

Dava vida à Sam de iCarly, uma maria-rapaz (isto ainda se pode dizer?) agressiva e engraçada. Só que ela não queria ser atriz. Ela odiava ser atriz. E isto era já suficientemente mau se a mãe não tivesse abusado dela de tantas outras maneiras.

Neste livro, ela consegue descrevê-lo de uma forma leve, até muito divertida, sem tirar a gravidade do assunto: ser colocada num sítio que não desejou, a viver um sonho que era o da sua mãe, que abusou psicologicamente dela, desvirtuando o seu corpo, causando distúrbios alimentares de forma consciente, mas com vista a um ‘bem maior’, na ótica da mãe.

Jennette relata na primeira pessoa, e com algum humor, os graves abusos maternos numa família disfuncional onde todos parecem não querer perceber o que se passa, ao mesmo tempo que uma jovem miúda sofre com o flagelo da anorexia, incentivada pela própria mãe, e da saúde mental, relatando na primeira pessoa a sua história com uma escrita simples, honesta e clara, sem grandes floreados nem figuras de estilo.

É um livro que nos deixa a pensar como é que uma mãe cria regimes alimentares, retira a liberdade da própria filha e faz uma forte pressão psicológica e física para que uma simples criança seja vista como um bem precioso no meio artístico; que vive anos a menosprezar as vontades da sua filha para que as imposições que lhe coloca sejam levadas a sério; que consegue ser a causadora da doença da filha…deixa-nos a pensar sobre quantas Jennettes não existem na indústria do audiovisual e, nos dias que correm, nas redes sociais...

Aceitarmos o que somos, quem somos, percebermos qual o nosso papel neste mundo, os nossos limites, o que nos acontece e o que esperam de nós já é difícil quanto baste quando aqueles que nos devem amar acima de tudo são um porto de abrigo, uma âncora a que nos podemos agarrar para manter a nossa sanidade e estabilidade; quanto mais quando aqueles que deveriam cuidar de nós, colocando-nos em primeiro lugar, aceitando o que somos, amando-nos são desequilibrados e vivem numa qualquer distopia narcisista onde procuram ser o sol na vida daqueles que trazem ao mundo.

O meu colega não teve uma mãe que lhe moldou a vida; teve uma mãe que o abandonou e um pai que tentou cuidar de tudo, e isso moldou-lhe a vida, moldou-lhe o rumo da juventude, obrigando-o a ser pai de irmãos e não saborear da proteçao paternal que todos deveriamos ter à partida...

Quantos dos nossos traumas, manias, vícios não são já uma herança familiar que carregamos de forma inconsciente? Quanto de nós não é moldado pela programação que trazemos e que, nem sempre, conseguimos controlar sem ajuda?

Não tenho por hábito partilhar por aqui a minha opinião sobre os livros que leio (apenas pequenos pensamentos que retiro de cada um), mas  recomendo a leitura do livro, mesmo que não queiram fazer qualquer reflexão. É simples e de leitura rápida, excelente para um domingo de chuva, embrulhados no sofá com uma mantinha e uma caneca de chá.

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